ESTAMOS NUMA HORA DE UM CRISTIANISMO COM FÉ, AMOR,
PERDÃO, MISERICÓRDIA E PERSEVERANÇA!
Caros amigos,
Para além de nossas opiniões ou sentimentos sobre a
pessoa e as posições de Leonardo Boff, vale muito a pena ler essa reflexão
escrita por ele a propósito da situação atual da Igreja Católica. É um discurso
sério, competente,
feito com conhecimento de causa e - isso talvez
seja o mais surpreendente - revela que o autor conserva um grande amor pela
Igreja, mesmo na sua dimensão humana e institucional, e ainda a ama, não
obstante seu caminho traumático
pelas suas veredas, seja no sentido ativo (golpes
desferidos) que no passivo (golpes sofridos), por assim dizer.
Como cristãos maduros e conscientes, penso, não
devemos ter medo das crises e da constatação que a nossa Santa Mãe Igreja
(Casta por graça e obra de Deus) é também Pecadora (por obra nossa, seus
frágeis filhos).
Um abraço do
Luciano (Sepúlveda)
Leonardo Boff
Quem acompanhou o noticiário
dos últimos dias acerca dos escândalos dentro do Vaticano, trazidos ao
conhecimento pelos jornais italianos “La Repubblica” e o “La Stampa”, referindo
um relatório com trezentas páginas, elaborado por três Cardeais provectos sobre
o estado da cúria vaticana deve, naturalmente, ter ficado estarrecido. Posso
imaginar nossos irmãos e irmãs piedosos que, fruto de um tipo de catequese
exaltatória do Papa como “o doce Cristo na Terra” devam estar sofrendo muito,
pois amam o justo, o verdadeiro e o transparente e jamais quereriam ligar sua
figura a notórios malfeitos de seus assistentes e cooperadores.
O conteúdo gravíssimo destes
relatórios reforçaram, no meu entender, a vontade do Papa de renunciar. Aí se
comprovava uma atmosfera de promiscuidade, de luta de poder entre “monsignori”,
de uma rede de homossexualismo gay dentro do Vaticano e desvio de dinheiro do
Banco do Vaticano. Como se não bastassem os crimes de pedofilia em tantas
dioceses que desmoralizaram profundamente a instituição-Igreja.
Quem conhece um pouco a
história da Igreja – e nós profissionais da área temos que estudá-la
detalhadamente – não se escandaliza. Houve épocas de verdadeiro descalabro do
Pontificado com Papas adúlteros, assassinos e vendilhões. A partir do Papa
Formoso (891-896) até o Papa Silvestre (999-1003) se instaurou segundo o grande
historiador Card. Barônio a “era pornocrática” da alta hierarquia da Igreja.
Poucos Papas escapavam de serem depostos ou assassinados. Sergio III (904-911)
assassinou seus dois predecessores, o Papa Cristóvão e Leão V.
A grande reviravolta na
Igreja como um todo, aconteceu, com conseqüências para toda a história
ulterior, com o Papa Gregório VII em 1077. Para defender seus direitos e a
liberdade da instituição-Igreja contra reis e príncipes que a manipulavam,
publicou um documento que leva este significativo título “Dictatus Papae” que
literalmente traduzido significa “a Ditadura do Papa”. Por este documento, ele
assumia todos os poderes, podendo julgar a todos sem ser julgado por ninguém. O
grande historiador das idéias eclesiológicas Jean-Yves Congar, dominicano,
considera a maior revolução acontecida na Igreja. De uma Igreja-comunidade
passou a ser uma instituição-sociedade monárquica e absolutista, organizada de
forma piramidal e que vem até os dias atuais.
Efetivamente, o cânon 331 do
atual Direito Canônico se liga a esta compreensão, atribuindo ao Papa poderes
que, na verdade, não caberiam a nenhum mortal, senão somente a Deus: ”Em
virtude de seu ofício, o Papa tem o poder ordinário, supremo, pleno, imediato,
universal” e em alguns casos precisos, “infalível”.
Esse eminente teólogo,
tomando a minha defesa face ao processo doutrinário movido pelo Card. Joseph
Ratzinger em razão do livro “Igreja:carisma e poder” escreveu um artigo no “La
Croix” (8/9/1984) sobre o “O carisma do poder central”. Aí escreve: “O carisma
do poder central é não ter nenhuma dúvida. Ora, não ter nenhuma dúvida sobre si
mesmo é, a um tempo, magnífico e terrível. É magnífico porque o carisma do
centro consiste precisamente em permanecer firme quando tudo ao redor vacila. E
é terrível porque em Roma estão homens que tem limites, limites em sua
inteligência, limites em seu vocabulário, limites em suas referências, limites no
seu ângulo de visão”. E eu acrescentaria ainda limites em sua ética e moral.
Sempre se diz que a Igreja é
“santa e pecadora” e deve ser “sempre reformada”. Mas não é o que ocorreu
durante séculos nem após o explícito desejo do Concílio Vaticano II e do atual
Papa Bento XVI. A instituição mais velha do Ocidente incorporou privilégios,
hábitos, costumes políticos palacianos e principescos, de resistência e de
oposição que praticamente impediu ou distorceu todas as tentativas de reforma.
Só que desta vez se chegou a
um ponto de altíssima desmoralização, com práticas até criminosa que não podem
mais ser negadas e que demandam mudanças fundamentais no aparelho de governo da
Igreja. Caso contrário, este tipo de institucionalidade tristemente envelhecida
e crepuscular definhará até entrar em ocaso. Os atuais escândalos sempre
houveram na cúria vaticana apenas que não havia um providencial Vatileaks para
trazê-los a público e indignar o Papa e a maioria dos cristãos.
Meu sentimento do mundo me
diz que estas perversidades no espaço do sagrado e no centro de referência para
toda a cristandade – o Papado – (onde deveria primar a virtude e até a
santidade) são conseqüência desta centralização absolutista do poder papal. Ele
faz de todos vassalos, submissos e ávidos por estarem fisicamente perto do
portador do supremo poder, o Papa. Um poder absoluto, por sua natureza, limita
e até nega a liberdade dos outros, favorece a criação de grupos de anti-poder,
capelinhas de burocratas do sagrado contra outras, pratica largamente a simonía
que é compra e venda de vantagens, promove adulações e destrói os mecanismos da
transparência. No fundo, todos desconfiam de todos. E cada qual procura a
satisfação pessoal da forma que melhor pode. Por isso, sempre foi problemática
a observância do celibato dentro da cúria vaticana, como se está revelando
agora com a existência de uma verdadeira rede de prostituição gay.
Enquanto esse poder não se
descentralizar e não outorgar mais participação de todos os estratos do povo de
Deus, homens e mulheres, na condução dos caminhos da Igreja o tumor causador
desta enfermidade perdurará. Diz-se que Bento XVI passará a todos os Cardeais o
referido relatório para cada um saber que problemas irá enfrentar caso seja
eleito Papa. E a urgência que terá de introduzir radicais transformações. Desde
o tempo da Reforma que se ouve o grito: ”reforma na Cabeça e nos membros”.
Porque nunca aconteceu, surgiu a Reforma como gesto desesperado dos
reformadores de fazerem por própria conta tal empreendimento.
Para ilustração dos cristãos
e dos interessados em assuntos eclesiásticos, voltemos à questão dos
escândalos. A intenção é desdramatizá-los, permitir que se tenha uma noção
menos idealista e, por vezes, idolátrica da hierarquia e da figura do Papa e
libertar a liberdade para a qual Cristo nos chamou (Galatas 5,1). Nisso não vai
nenhum gosto pelo Negativo nem vontade de acrescentar desmoralização sobre
desmoralização. O cristão tem que ser adulto, não pode se deixar infantilizar
nem permitir que lhe neguem conhecimentos em teologia e em história para dar-se
conta de quão humana e demasiadamente humana pode ser a instituição que nos vem
dos Apóstolos.
Há uma longa tradição
teológica que se refere à Igreja como casta meretriz, tema abordado
detalhadamente por um grande teólogo, amigo do atual Papa, Hans Urs von
Balthasar (ver em Sponsa Verbi, Einsiedeln 1971, 203-305). Em várias ocasiões o
teólogo J. Ratzinger se reportou a esta denominação.
A Igreja é uma meretriz que
toda noite se entrega à prostituição; é casta porque Cristo, cada manhã se
compadece dela, a lava e a ama.
O habitus meretrius da
instituição, o vício do meretrício, foi duramente criticado pelos Santos Padres
da Igreja como Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Jerônimo e outros. São
Pedro Damião chega a chamar o referido Gregório VII de “Santo Satanás” (D.
Romag, Compêndio da história da Igreja, vol 2, Petrópolis 1950,p.112). Essa
denominação dura nos remete àquela de Cristo dirigida a Pedro. Por causa de sua
profissão de fé o chama “de pedra”mas por causa de sua pouca fé e de não
entender os desígnios de Deus o qualificou de “Satanás”(Evangelho de Mateus
16,23). São Paulo parece um moderno falando quando diz a seus opositores com
fúria: “Oxalá sejam castrados todos os que vos perturbam”(Gálatas 5.12).
Há portanto, lugar para a
profecia na Igreja e para a denúncias dos malfeitos que podem ocorrer no meio
eclesiástico e também no meio dos fiéis.
Vou referir outro exemplo
tirado de um santo querido da maioria dos católicos brasileiros, por sua
candura e bondade: Santo Antônio de Pádua. Em seus sermões, famosos na época,
não se mostra nada doce e gentil. Fez vigorosa crítica aos prelados devassos de
seu tempo. Diz ele: “os bispos são cachorros sem nenhuma vergonha, porque sua
frente tem cara de meretriz e por isso mesmo não querem criar vergonha”(uso a
edição crítica em latim publicada em Lisboa em 2 vol em 1895). Isto foi
proferido no sermão do quarto domingo depois de Pentecostes ( p. 278). De outra
vez, chama os prelados de “macacos no telhado, presidindo dai o povo de
Deus”(op cit p. 348). E continua:” o bispo da Igreja é um escravo que pretende
reinar, príncipe iniquo, leão que ruge, urso faminto de rapina que espolia o
povo pobre”(p.348). Por fim na festa de São Pedro ergue a voz e denuncia:”Veja
que Cristo disse três vezes: apascenta e nenhuma vez tosquia e ordenha… Ai
daquele que não apascenta nenhuma vez e tosquia e ordena três ou mais vezes…ele
é um dragão ao lado da arca do Senhor que não possui mais que aparência e não a
verdade”(vol. 2, 918).
O teólogo Joseph Ratzinger
explica o sentido deste tipo de denúncias proféticas:” O sentido da profecia
reside, na verdade, menos em algumas predições do que no protesto profético:
protesto contra a auto-satisfação das instituições, auto-satisfação que
substitui a moral pelo rito e a conversão pelas cerimônias” (Das neue Volk
Gottes, Düsseldorf 1969, p. 250, existe tradução português).
Ratzinger critica com ênfase
a separação que fizemos com referência à figura de Pedro: antes da Páscoa, o
traidor; depois de Pentecostes, o fiel. “Pedro continua vivendo esta tensão do
antes e do depois; ele continua sendo as duas coisas: a pedra e o escândalo…
Não aconteceu, ao largo de toda a história da Igreja, que o Papa,
simultaneamente, foi o sucessor de Pedro, a “pedra” e o “escândalo”(p. 259)?
Aonde queremos chegar com
tudo isso? Queremos chegar ao reconhecimento de que a igreja- instituição de
papas, bispos e padres, é feita de homens que podem trair, negar e fazer do
poder religioso negócio e instrumento de autosatisfação. Tal reconhecimento é
terapêutico, pois nos cura de toda uma ideologia idolátrica ao redor da figura
do Papa, tido como praticamente infalível. Isso é visível em setores
conservadores e fundamentalistas de movimentos católicos leigos e também de
grupos de padres. Em alguns vigora uma verdadeira papolatria que Bento XVI
procurou sempre evitar.
A crise atual da Igreja
provocou a renúncia de um Papa que se deu conta de que não tinha mais o vigor
necessário para sanar escândalos de tal gravidade. “Jogou a toalha” com
humildade. Que outro mais jovem venha e assuma a tarefa árdua e dura de limpar
a corrupção da cúria romana e do universo dos pedófilos, eventualmente puna,
deponha e envie alguns mais renitentes para algum convento para fazer
penitência e se emendar de vida.
Só quem ama a Igreja pode
fazer-lhe as críticas que lhe fizemos, citando textos de autoridade clássicas
do passado. Quem deixou de amar a pessoa um dia amada, se torna indiferente à
sua vida e destino. Nós nos interessamos à semelhança do amigo e de irmão de
tribulação Hans Küng, (foi condenado pela ex-Inquisição) talvez um dos teólogos
que mais ama a Igreja e por isso a critica.
Não queremos que cristãos
cultivem este sentimento de descaso e de indiferença. Por piores que tenham
sido seus erros e equívocos históricos, a instituição-Igreja guarda a memória
sagrada de Jesus e a gramática dos evangelhos. Ela prega libertação, sabendo
que geralmente são outros que libertam e não ela.
Mesmo assim vale estar
dentro dela, como estavam São Francisco, dom Helder Câmara, João XXIII e os
notáveis teólogos que ajudaram a fazer o Concílio Vaticano II e que antes
haviam sido todos condenados pela ex-Inquisição, como De Lubac, Chenu, Congar,
Rahner e outros. Cumpre ajudá-la a sair deste embaraço, alimentando-nos mais do
sonho de Jesus de um Reino de justiça, de paz e de reconciliação com Deus e do
seguimento de sua causa e destino do que de simples e justificada indignação
que pode cair facilmente no farisaísmo e no moralismo.
Mais reflexões desta ordem
se encontram no meu Igreja: carisma e poder (Record 2005) especialmente no
Apêndice com todas a atas do processo havido no interior da ex-Inquisição em
1984.